Você tem amigos?


Você tem amigos?


Julia Ramalho-Pinto
Paixão por ajudar a transformar pessoas e organizações na sua melhor versão,
vendo oportunidades diante as incertezas.


Essa é uma pergunta que eu sempre gostei de fazer aos meus alunos de graduação. Eu explorava o tema para saber o quanto eles eram capazes de desenvolver relações e construir laços afetivos. Invariavelmente, recebia um grande volume de respostas como: “Ah, professora, isso não existe!”.
Na primeira vez em que ouvi essa resposta, eu me espantei. De lá para cá, já se passaram quase 20 anos. E, se naquele momento já era difícil para eles entender a amizade, nos tempos atuais isso se tornou ainda mais desafiador. Afinal, a questão da amizade passou a ter contornos mais complexos quando começamos a viver em uma sociedade digital e superconectada.


Você tem amigos ou é popular?

João, um adolescente de 12 anos, me afirma que tem muitos amigos e, como comprovação, me apresenta o número deles no Facebook. Mas, em sua escola, João muitas vezes procura se refugiar na biblioteca na hora do recreio. Para ele, conviver com os meninos da escola não é tarefa fácil. Mas João não está sozinho: aprender a desenvolver a amizade não é fácil para ele nem para ninguém, já que lidar com sentimentos e emoções muitas vezes incertos e ambíguos é um desafio tanto para as crianças e os adolescentes quanto para os adultos.

Muitas pessoas acreditam que a amizade se baseia numa capacidade de extroversão e socialização. Assim, pensam que é possível ter um milhão de amigos. Mas, como ter um milhão de amigos e interagir com eles? Como cultivar relações com um milhão de pessoas? Parece-me que ser agradável, divertido, carismático e popular nas redes sociais não torna nossos seguidores, necessariamente, nossos amigos.

O João aprendeu sobre isso a duras penas. Toda vez que tentava expressar suas opiniões ou dialogar sobre algo que considerava importante, e que suas ideias divergiam das de um “amigo”, este o bloqueava nas redes. Se isso acontecia na escola, o “amigo” ficava de mal e não falava mais com ele. Assim ele foi aprendendo que ser popular, muitas vezes, faz com que nos tornemos reféns dessas relações que, muitas vezes, são superficiais: nós acabamos trabalhando para manter nossa popularidade, fazendo tudo aquilo que acreditamos que os outros esperam de nós. Por outro lado, movidos pelo egocentrismo e pelo narcisismo, acabamos não conseguindo nos expressar de forma autêntica nessas relações.

E, assim, descobre-se que um fã não é, necessariamente, um amigo; que é possível que sejamos populares e não tenhamos amigos. Se modulamos nossos comportamentos e falas para “jogar para a torcida”, se fazemos tudo o que os outros querem que façamos, pode ser que estejamos desenvolvendo fãs e audiência, mas não amigos. Amigos não se deletam, não se bloqueiam... o que não quer dizer que não discutam, não discordem, não briguem. Há brigas de amigos horrorosas, mas, como bem me disse uma vez um amigo de colégio, de longa data, não existem “ex-amigos”.

Já o fã... se expressamos algo importante para nós mas que o desagrada, nós o perdemos na hora, e, quando isso acontece on-line, rapidamente se perdem também  popularidade e seguidores. Diante disso, acho que fica bem evidente que ter um milhão de fãs é o mesmo que ter um milhão de “amizades” frágeis.



A amizade movida pelo prazer

Quando temos um hobby ou gostamos de coisas das quais outras pessoas também gostam, tendemos a desenvolver amizades para curtir juntos essas afinidades: amizades para “maratonar” séries, para jogar, para baladas, para zoar nas redes sociais, e assim vai... Aristóteles chamou esse tipo de amizade de “amizade por prazer”. Nessa situação, desenvolvemos o afeto enquanto compartilharmos gostos em comum. Mas, quando acaba a curtição, acaba também a amizade. Podemos dizer, assim, que esse tipo de amizade é, como o das redes sociais, raso e frágil.

Amigo não precisa ser parecido ou igual

Uma das visões sobre a amizade de que mais gosto é a da filósofa Hannah Arendt. Para ela, a amizade é amor mundi, ou seja, a amizade é perpassada pelas coisas do mundo e acolhe a diferença de visão das pessoas que se relacionam. O amigo reconhece e aceita essa diferença, tanto na comunicação quanto no agir, exercendo e dando liberdade para que cada um seja quem é.

Essa visão é bastante diferente daquela que entende a amizade como lugar da intimidade e da compaixão, em que tomo o outro como meu espelho. Assim, me identifico e aceito o outro apenas por acreditar que o outro é um ser como eu mesmo sou. Nesse tipo de amizade, quando algo faz com que essas imagens refletidas se distanciem e, assim, frustrem minhas expectativas, deduzo que o outro não merece ser meu amigo. Novamente, podemos pensar que a amizade que só se institui “entre iguais” também é rasa e frágil.


A amizade em tempos digitais

Na sociedade digital, com a proliferação das redes sociais e, nestas, de imagens e narrativas do EU, tornam-se a cada dia mais perceptíveis a intolerância em relação ao OUTRO e a diminuição progressiva do diálogo. No fluxo de informações rápidas e na falta de tempo para ouvir e se relacionar, as pessoas procuram seguir e compartilhar informações apenas com aqueles que lhes parecem semelhantes. Além disso, os algoritmos induzem e selecionam essas “amizades”, tornando nosso mundo on-line, cada vez mais, igual a uma bolha em que apenas se abrigam aqueles que se identificam.

Nesse sentido, não é de se estranhar que a exposição da intimidade ocorra de forma tão rápida e tão espontânea no mundo on-line: essa “bolha” acaba por gerar um sentimento de confiança exacerbada, uma vez que acreditamos que todos que ali estão têm a mesma visão que nós, que são “iguais a nós” e que, como tal, serão nossos amigos e nos aceitarão. Diante desse cenário, as pessoas se expõem sem censuras e sem limites, tanto por imagens quanto por palavras que não seriam capazes de compartilhar pessoalmente.

Não há dúvidas de que, como seres sociais, queremos pertencer a um grupo e ser amados por aqueles com quem convivemos. No entanto, o problema é que, mesmo “entre os que parecem iguais”, sempre haverá diferenças: o que o mundo on-line nos oferece é apenas uma ilusão de comunidade e amizade. Então, quando essas diferenças começam a aparecer no interior de nossas bolhas sociais, a situação se torna insuportável e leva muitas pessoas a enxergarem como única alternativa bloquear, deletar ou mesmo odiar essa “amizade”, que já não se apresenta mais como um igual. Se as relações estabelecidas nessas bolhas digitais são “amizades” rasas e frágeis, baseadas apenas no populismo e movidas pela curtição, elas se rompem facilmente.

Estudos mostram que, a partir das redes digitais, o mundo está se tornando cada vez mais extremista. Encarcerados nessas “bolhas narcísicas”, onde tudo é espelho de nós mesmos, onde não queremos ver o outro mas nos ver nos outros, vemos crescer a intolerância frente à diferença. Distanciamo-nos dessa amizade de amor mundi, que suporta o diálogo, que procura ver e ouvir o outro, mesmo ciente de que ele difere de mim.  

Nesse cenário, parece-me a cada dia mais urgente resgatarmos a amizade como um valor, como um bem maior, como algo que precisamos desenvolver e preservar, acima de tudo. Isso ajudaria o João a enfrentar o mundo, assim como levaria a uma resposta diferente daquela dada por meus alunos da graduação. Pois amigos de verdade nos permitem ver de várias perspectivas, e assim acabam ampliando nossa visão de mundo. Com amigos de verdade, temos a segurança do afeto verdadeiro, mesmo quando discordamos, brigamos, discutimos. Sim, os amigos de verdade brigam, mas são capazes de fazer as pazes, de reconhecer quando erram uns com os outros e se desculpar, de respeitar opiniões diferentes das suas, mesmo se não concordam com elas. Amigos de verdade, mesmo quando ficam longe, acompanham uns aos outros, amorosamente se apoiam, compartilham as alegrias e se ajudam quando é preciso superar momentos de solidão, tristeza, angústia e dificuldade. Amigos de verdade, enfim, nos mostram que podemos ser maiores do que nossa pequenez egoísta e narcísica, e nos ajudam incansavelmente a nos tornarmos melhores do que nós mesmos.



Júlia Ramalho reside em Belo Horizonte (Brasil) e ajuda pessoas e organizações a revelarem o seu melhor, ao clarear propósitos, ver possibilidades diante das incertezas e manter foco nas ações necessárias. Faz isso há mais de 18 anos por meio de atendimentos em coaching e clínicos. Possui formação como psicóloga, coach e administradora, sendo também mestra nessa última área. Desde 2005 vem investigando as novas tecnologias e seus impactos sobre o trabalho e as futuras gerações. Como gestora, dirige a Estação do Saber [www.estacaodosaber.com] e foi presidente fundadora da International Coach Federation – Chapter Minas. Coordenou projetos de discussão sobre as novas tecnologias (ETC_BH -2009 a 2013) e de transformação da nossa cultura e sociedade (Estação Pátio Savassi – 2005 a 2013). Atualmente se dedica à construção de uma metodologia de orientação de carreiras através de conhecimentos de coaching, design thinking e análise de forças tecnológicas como inteligência artificial, internet das coisas e realidade virtual, dentre outras. Coordena e participa do grupo designers do futuro, que tem por objetivo promover discussões sobre o impacto dessas tecnologias em carreiras, gestão e sociedade.




Comentários

  1. Muito interessante! Lembrei do conceito do Rubem Alves de que amizade tem a marca da inutilidade. Esse professor usa o exemplo do silencio: se vc consegue ficar em silêncio com a presença de um amigo, sem necessidade da utilidade do tempo, esse pode ser amigo. E lembrei-me tb da ideia de amizade na filosofia feita a partir de antropologias indígenas..essas sociedades na america do sul tem a tendencia de ver todos os outros como inimigos e diferentes na selva da vida. Por isso, desenvolvem um sistema de alianças e fazem, assim, suas amizades: baseadas no compromisso da aliança e não no espelhamento do eu no outro. Em metáfisicas canibais, Eduardo Viveiros de Castro escreve isso. Parabéns professora!

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